Sobre o uso antissocial da crise econômica

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Na União Europeia todos estão de acordo que o objetivo principal é reduzir o déficit, e paralelamente realizar "reformas estruturais" que estejam sintetizadas em liberalização do mercado de trabalho, redução do gasto social e progressivo esvaziamento da negociação coletiva.  

 A solução da crise é incerta. Pode começar a ser superada ou agravar-se, mas o que é evidente é que o nível de desemprego no chamado mundo desenvolvido ficará muito acima do verificado em anos anteriores.

Não há uma receita consensual para superar a situação, a mais grave em décadas de alterações cíclicas da economia globalizada. Na reunião do G-20, realizada em Toronto, em junho de 2010, foram apresentadas duas estratégias bem diferentes, opondo Estados Unidos e Europa. Para a administração Obama, é essencial, nesta fase, uma política de gastos públicos destinada a reforçar a atividade econômica e a combater o desemprego. A União Europeia, ao contrário, se inclina por uma política fiscal restritiva, que leve a uma redução do déficit e faça com que as economias europeias voltem aos parâmetros de Maastricht. A diferença entre as duas propostas é radical e reproduz orientações muito concretas de pensamentos econômicos opostos. Sem dúvida, politicamente, o problema é outro.

Enquanto nos Estados Unidos democratas e republicanos travam uma batalha sobre o uso do orçamento público para estimular a economia, na União Europeia este debate não ocorre nem entre os governos dos diferentes países membros, nem entre eles e a Comissão, já que todos estão de acordo que o objetivo principal é reduzir o déficit, adiando o crescimento do emprego. Paralelamente a este objetivo, surge outro não menos importante que, aos poucos, vai se firmando como muito mais importante. Trata-se de realizar "reformas estruturais" que, por meio de várias combinações, estejam sintetizadas em três eixos: liberalização e flexibilização do mercado de trabalho, redução do gasto social, especialmente daquele proveniente das aposentadorias, e progressivo esvaziamento da negociação coletiva como forma de regular as relações trabalhistas.

Tal consenso, um prelúdio de reformas totalmente antissociais, é sentido em toda Europa, independente da orientação política dos governos, sejam eles conservadores ou progressistas, ainda que não se estenda à política de esquerda: na França e na Alemanha, os partidos socialistas de oposição criticam a política de redução do déficit e o aspecto antissocial das medidas adotadas na crise econômica. A esquerda alternativa opõe-se a estes planos e defende posições de resistência.

Esta orientação econômica, social e política é, sem dúvida, fortemente rejeitada pelos sindicatos europeus. Em princípio, pelo trabalho desenvolvido pelos sindicatos nacionais, como no dramático caso da Grécia. Mas também na Itália, apesar da inconcebível divisão sindical ocorrida no governo de Berlusconi. Na França, a mobilização contra Sarkozy é contínua. Na Inglaterra, a TUC se opõe ao governo de James Cameron. Na Alemanha, o setor público se mobiliza contra os cortes de gastos sociais de Merkel. E, na Espanha, a CCOO e a UGT convocam a uma greve geral contra a reforma trabalhista, proposta pelo governo de Zapatero. Em cada país, destaca-se algum ponto dessas políticas antissociais, que se apresentam como consequências "naturais" das medidas anticrise.

Esta situação fez com que a Confederação Europeia de Sindicatos convocasse, finalmente, um dia de mobilização para 29 de setembro. Neste dia, em diversos países europeus ocorrerão protestos e greves. Haverá a greve geral espanhola, as greves de advertência alemãs no setor público, a manifestação nacional em Roma, convocada pela CGIL, e as marchas previstas na França, Portugal e Grécia. Todos estes fatos relevantes se resumirão em uma grande manifestação em Bruxelas, que exigirá uma mudança na política adotada pelos poderes públicos e pelas instituições reguladoras da economia na Europa, a fim de fomentar o crescimento econômico juntamente com bem-estar social, sem cortar direitos sociais e trabalhistas. Será um protesto massivo, como o realizado contra a Diretiva Bolkstein e a liberalização dos serviços na perspectiva do dumping social, que culminou numa grande vitória do movimento sindical europeu. Nesta ocasião, a CES faz uma convocação para afirmar que outra política é possível e as medidas para sair da crise, tal como estão desenhadas, devem ser rejeitadas, porque rompem o modelo social europeu, no qual se baseia a construção política da União Europeia.

Isso quer dizer que o sindicalismo europeu se mobiliza para rejeitar a desregulamentação do mercado de trabalho, mediante a liberalização da demissão e a flexibilização dos salários, a redução do gasto social destinado às aposentadorias, a privatização dos serviços ainda classificados como públicos e a submissão à lógica de um mercado sem limites, decorrente da ação política. Tudo isso no contexto de certas "reformas estruturais", que perseguem a mudança estrutural nas relações sociais de poder, mediante as já citadas operações cirúrgicas, por meio das reformas normativas em cursos nos diferentes sistemas jurídicos nacionais.

Em alguns casos, como na Itália e na Espanha, estas reformas estruturais pretendem afetar diretamente as estruturas da negociação coletiva sobre as quais se baseiam as conquistas, os direitos e a capacidade de intervenção e controle dos trabalhadores. Trata-se de minar a negociação coletiva setorial, que cria uma rede de solidariedade e dá ao sindicato uma "voz" e um poder de negociar, permitindo-lhe dirigir os processos de regulação das relações trabalhistas muito além das concretas e cambiantes relações de força em cada empresa, substituindo-a pelo seu oposto: a tomada de decisão sobre as condições de trabalho e os níveis salariais exclusivamente nas empresas ou nos locais de trabalho.Este é um ponto menos conhecido, mas também estratégico no desenho do desmantelamento dos direitos coletivos e sindicais, que se persegue mediante o uso antissocial das medidas anticrise. É um sinal dos tempos que a esquerda política europeia se encontre dividida e impotente na hora de apresentar um projeto de renovação da sociedade, em que a atuação pública contra a crise apoie de forma decidida compatibilizar um amplo nível de democracia social e direitos coletivos e individuais dos trabalhadores com a recuperação e o crescimento econômico, dentro de parâmetros de sustentabilidade ambiental e da sociedade do conhecimento.

Neste cenário degradado, tem aumentado a responsabilidade do sindicalismo europeu como o portador de um programa de ação que esteja sintonizado com as realidades sociais dos povos da Europa e que não se limite à resistência contra o desmantelamento progressivo de elementos básicos do modelo social, mascarado pelas autodenominadas reformas estruturadas, inspiradas no fundamentalismo de mercado. Deve parecer óbvio que, em meio à mais grave crise sofrida após a integração europeia, não seja possível atribuir sentido e significado à dimensão política da União, sem um programa econômico e social alternativo ao panorama desastroso ao qual conduzem as políticas neoconservadoras, que ofuscaram a inspiração progressista que marcou a plataforma e os programas de ação europeus, em seus momentos mais elevados sob a direção de Jacques Delors.

Os obstáculos são, sem dúvida, numerosos e há uma forte aposta na derrota deste projeto, em favor do qual joga a apatia política de uma grande parte da população e a incerteza e o medo que a crise econômica gera sobre as pessoas. A Europa viverá anos de inevitável e crescente conflito social com consequências imprevisíveis sobre o quadro político e eleitoral que conhecemos

Antonio Baylos

Catedrático de Derecho del trabajo. Universidad de Castilla-la Mancha
Co-Editor Insight.
www.baylos.blogspot.com
antonio.baylos@uclm.es